Graziela Andrade
Emaranhada às cortinas do
auditório, Izabel Stewart dançava ao som de uma espécie de realejo que
integrava a parafernália musical de Marcelo Kraiser em Torsões, performance que
abriu a tarde de sexta-feira passada em Outra
Presença. O “espetáculo improvisatório” propôs um entrelaçamento entre a
dança e o som gerado por inúmeros e singulares instrumentos elaborados pelo
próprio artista.
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Marcelo Kraiser e Izabel Stewart em Torsões. (Foto: Luiza Palhares) |
A inicial beleza estranha da
bailarina em veste branca e desgrenhada passou a uma espécie de histeria
vermelha e amedrontadora, quando de seu encontro com um “bebê oco” representado
por um corpo partido entre o quadril e a cabeça. Bebê que marca um
atravessamento entre os estados materno e enlouquecido da personagem. E, ainda,
um atravessamento entre os corpos, a dança e o som, que captaram e evidenciaram
o desconforto de alguns dos enfrentamentos, aos quais, como humanos, estamos
fadados.
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Izabel Stewart e seu "bebê oco". (Foto: Luiza Palhares) |
No mesmo espaço, Marc Davi apresentou O ovo. Estimulado pela potência,
singeleza e fragilidade do elemento que dá nome a obra, o artista compôs um
cenário no qual se conjugavam limites e transparências através de objetos de
vidro e pedras diversas. Entre tais objetos surgiu o corpo, modelado por um
figurino que funcionava como continuidade da pele e dava destaque ao penacho
que recobria toda a cabeça, transfigurando a figura humana.
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Marc Davi em O Ovo. (Foto: Luiza Palhares) |
O silêncio que tomava o ambiente
era rompido por sons melancólicos emitidos pelo artista e que faziam vibrar os
vidros, inclusive do chão em que estava deitado. Deixando a sala e alguns
espectadores que esperavam por sua volta, Marc Davi foi até o jardim frontal do
MAP arrastando um véu de tecido pardo e se instalou, e se misturou, ao chão de
pedras de mesmo tom.
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No jardim do MAP, Marc Davi. (Foto: Luiza Palhares) |
Mais tarde foi a vez de Wilson
de Avellar discutir a mutação e contato dos corpos em Ensaio sobre o contágio. Tornando literal a questão do
atravessamento, o artista fez um buraco em um dos vidros do salão nobre e por
ele passou uma carreira de linguiças, único ponto de contato entre os
espectadores – posicionados do lado de fora do salão – e a performance, que aconteceu a portas fechadas.
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Wilson de Avellar em Ensaio sobre o contágio. (Foto: Luiza Palhares) |
Dentro, Wilson, tocando um
instrumento chamado Korá, era acompanhando por dois seguranças figurantes e
vestia uma cabeça de porco, salto alto e terno rosas - perfurado de forma a
deixar à mostra seu pênis. Dali espalhavam-se em grama sintética 60 kg de linguiça
até que eles alcançassem o furo do vidro. Fora, o público era provocado em uma
degustação na qual a linguiça era frita de fatia em fatia e servida junto a uma
dose do uísque Passport, em um único
copo compartilhado. Expandida no
tempo, dividida no espaço, provocativa nos gestos e rebuscada por elementos em
nada aleatórios, a performance compôs,
cuidadosa e sensivelmente, um desejo de contiguidade e heterogeneização.
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Mutação dos corpos. (Foto: Luiza Palhares) |
A remontagem de Corpo a corpo in cor-pus meus, da
artista precursora Teresinha Soares - que acompanhou a performance -, encerrou o dia no MAP. Embora tenha sido criada em
1970, a obra - que foi doada ao museu - tem caráter multimídia, pois reúne,
para além do corpo, a poesia, escultura, dança e iluminação, essa última
elaborada por vias de um retroprojetor que fazia imagética a não mistura entre
água e óleo. A parte escultórica da obra diz respeito a formas corpóreas e
sexuais, nas quais três performers
deslizavam em uma movimentação orgânica acompanhada pela gravação em áudio de
um texto de Jota D´ângelo. Regendo todos os elementos da obra estava a
dicotomia de Eros versus Tânatus, o
corpo entre a pulsão de vida e a pulsão de morte.
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Corpo a corpo in cor-pus meus de Terezinha Soares. (Foto: Luiza Palhares) |
Por fim, dispôs-se, sobre a
plataforma que se tornara palco, a poesia de Teresinha em impressão original de
1970, que pôde ser levada pelo público e é reproduzida a seguir:
Sou carne curtida
seca-contorcida
exposta-batida
sofrida
Sou ilha pelada
cercada
de gente
calada, gelada
Sou o que sou
brinquedo
joguete
qualquer coisa
ocupando espaço
finita
vazia
perdida
Sou sombra na noite
claro no dia
sou aquilo que não
foi ainda
para vir a ser
aquilo
que passou depois
(Teresinha Soares)
seca-contorcida
exposta-batida
sofrida
Sou ilha pelada
cercada
de gente
calada, gelada
Sou o que sou
brinquedo
joguete
qualquer coisa
ocupando espaço
finita
vazia
perdida
Sou sombra na noite
claro no dia
sou aquilo que não
foi ainda
para vir a ser
aquilo
que passou depois
(Teresinha Soares)
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