1 de dez. de 2013

Aconteceu no Museu: Travessias e contágios



Graziela Andrade

Emaranhada às cortinas do auditório, Izabel Stewart dançava ao som de uma espécie de realejo que integrava a parafernália musical de Marcelo Kraiser em Torsões, performance que abriu a tarde de sexta-feira passada em Outra Presença. O “espetáculo improvisatório” propôs um entrelaçamento entre a dança e o som gerado por inúmeros e singulares instrumentos elaborados pelo próprio artista. 

Marcelo Kraiser e Izabel Stewart em Torsões. (Foto: Luiza Palhares)
A inicial beleza estranha da bailarina em veste branca e desgrenhada passou a uma espécie de histeria vermelha e amedrontadora, quando de seu encontro com um “bebê oco” representado por um corpo partido entre o quadril e a cabeça. Bebê que marca um atravessamento entre os estados materno e enlouquecido da personagem. E, ainda, um atravessamento entre os corpos, a dança e o som, que captaram e evidenciaram o desconforto de alguns dos enfrentamentos, aos quais, como humanos, estamos fadados.

Izabel Stewart e seu "bebê oco". (Foto: Luiza Palhares)


No mesmo espaço, Marc Davi apresentou O ovo. Estimulado pela potência, singeleza e fragilidade do elemento que dá nome a obra, o artista compôs um cenário no qual se conjugavam limites e transparências através de objetos de vidro e pedras diversas. Entre tais objetos surgiu o corpo, modelado por um figurino que funcionava como continuidade da pele e dava destaque ao penacho que recobria toda a cabeça, transfigurando a figura humana. 

Marc Davi em O Ovo. (Foto: Luiza Palhares)

O silêncio que tomava o ambiente era rompido por sons melancólicos emitidos pelo artista e que faziam vibrar os vidros, inclusive do chão em que estava deitado. Deixando a sala e alguns espectadores que esperavam por sua volta, Marc Davi foi até o jardim frontal do MAP arrastando um véu de tecido pardo e se instalou, e se misturou, ao chão de pedras de mesmo tom.

No jardim do MAP, Marc Davi. (Foto: Luiza Palhares)

Mais tarde foi a vez de Wilson de Avellar discutir a mutação e contato dos corpos em Ensaio sobre o contágio. Tornando literal a questão do atravessamento, o artista fez um buraco em um dos vidros do salão nobre e por ele passou uma carreira de linguiças, único ponto de contato entre os espectadores – posicionados do lado de fora do salão – e a performance, que aconteceu a portas fechadas. 

Wilson de Avellar em Ensaio sobre o contágio. (Foto: Luiza Palhares)


Dentro, Wilson, tocando um instrumento chamado Korá, era acompanhando por dois seguranças figurantes e vestia uma cabeça de porco, salto alto e terno rosas - perfurado de forma a deixar à mostra seu pênis. Dali espalhavam-se em grama sintética 60 kg de linguiça até que eles alcançassem o furo do vidro. Fora, o público era provocado em uma degustação na qual a linguiça era frita de fatia em fatia e servida junto a uma dose do uísque Passport, em um único copo compartilhado. Expandida no tempo, dividida no espaço, provocativa nos gestos e rebuscada por elementos em nada aleatórios, a performance compôs, cuidadosa e sensivelmente, um desejo de contiguidade e heterogeneização.  

Mutação dos corpos. (Foto: Luiza Palhares)

A remontagem de Corpo a corpo in cor-pus meus, da artista precursora Teresinha Soares - que acompanhou a performance -, encerrou o dia no MAP. Embora tenha sido criada em 1970, a obra - que foi doada ao museu - tem caráter multimídia, pois reúne, para além do corpo, a poesia, escultura, dança e iluminação, essa última elaborada por vias de um retroprojetor que fazia imagética a não mistura entre água e óleo. A parte escultórica da obra diz respeito a formas corpóreas e sexuais, nas quais três performers deslizavam em uma movimentação orgânica acompanhada pela gravação em áudio de um texto de Jota D´ângelo. Regendo todos os elementos da obra estava a dicotomia de Eros versus Tânatus, o corpo entre a pulsão de vida e a pulsão de morte.

Corpo a corpo in cor-pus meus de Terezinha Soares. (Foto: Luiza Palhares)

Por fim, dispôs-se, sobre a plataforma que se tornara palco, a poesia de Teresinha em impressão original de 1970, que pôde ser levada pelo público e é reproduzida a seguir:


Sou carne curtida
seca-contorcida
exposta-batida
sofrida
Sou ilha pelada
cercada
de gente
calada, gelada
Sou o que sou
brinquedo
joguete
qualquer coisa
ocupando espaço
finita
vazia
perdida
Sou sombra na noite
claro no dia
sou aquilo que não
foi ainda
para vir a ser
aquilo
que passou depois

(Teresinha Soares)






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