3 de dez. de 2013

Relatos Afetivos: sobre Canteiros e Dobras

Pompea Tavares*


Um inquietante ruído de respiração ocupou o espaço do Museu. Plantados no chão, três corpos camuflam-se em seus tapetes de vegetação verde e fresca. Canteiros artificiais, túmulos sobre o mármore duro e frio, com suas raízes tocando a pedra e a nós mesmos. O corpo performático se movia lentamente e no tempo dele nos movíamos ao redor e de um túmulo a outro, investigando os atos discretos por entre as folhagens. 

O perfume da vegetação tocava lugares da memória violados pelo tempo. Intimamente, foi preciso reativar esses lugares para encontrar os acontecimentos a que os cheiros me remetiam. O calor e vento fraco do dia fizeram com que o perfume se tornasse uma massa densa ao longo da tarde. O cheiro tão marcante da vegetação gerava dúvida quanto ao prazer ou a náusea.

Corpo, vegetação, paisagem, museu. A imagem viva compunha-se vagarosamente, o trânsito dos espectadores desenhava trajetos no espaço, presenças e vazios atravessavam-se. Na imagem inacabada, efêmera, o porvir se manifestava em ansiedade. O deslocamento do tempo nos obrigava a mergulhar no presente, em simbiose com o espaço. A interpretação dos acontecimentos se tornava um exercício de decifrar emoções. 

Canteiros, de Marco Paulo Rolla (Foto: Luiza Palhares)

Detive-me por alguns minutos a observar a reação do público, que circulava suavemente pelo salão. Alguns já habituados à linguagem performática olhavam atentos, outros desavisados surpreendiam-se com a presença dos corpos. Algumas pessoas falavam sozinhas diante dos canteiros, como se esperassem respostas daqueles corpos inertes, outras se constrangiam e se afastavam. No entanto, todos comportavam-se de forma semelhante: caminhavam lentamente, falavam baixo, não tocavam os canteiros e após perceberem o ritmo das ações – movimentos minuciosos, mãos que ofereciam galhos, um respiração ofegante - dirigiam-se para zonas mais afastadas do salão, a espera de um novo acontecimento. 

Do canteiro artificial de Marco Paulo Rolla via-se os jardins de Burle Marx, integrados. Ao longe, um grupo de crianças se aproximava vagarosamente apontando bem-te-vis, noivas e capivaras. As crianças, de cinco e seis anos, seguiam na minha direção com olhinhos atentos. A visita ao museu seria o passeio mais importante do ano para esse grupo, o primeiro contato com um museu de arte e com uma ação performática. 

Naqueles minutos, insisti em criar roteiros, passagens, perguntas; tentei mapear os sentidos possíveis a serem trabalhados. Uma reflexão sobre a morte? Buscar a memória olfativa a que os cheiros tão marcantes nos remetiam? Ir de um canteiro a outro, estabelecer relações com o Museu e as pessoas ali presentes? Ao fim de cada raciocínio, tudo parecia redutível e deslocado. Seria impossível mediar um acontecimento, desconhecido e inesperado? Eu deveria, portanto, como educadora e espectadora, me submeter também ao tempo da performance e dar chance ao grupo de experienciar a obra da mesma maneira como experimentamos a vida. O comando dos acontecimentos não me pertencia, não era eu a responsável pelo tempo ali, como de costume. O performer diria o tempo necessário de observação e interação e a reação do grupo me daria material para estabelecer, quando necessário, algum diálogo ou intervenção. 

Antes de entrarmos, orientei os pequenos apenas sobre os limites de comportamento estabelecidos pela instituição: correr, gritar, andar sozinho, pegar nas coisas, entre outras ações, ficariam para uma outra hora. O momento era de caminhar atento, olhar e investigar. O imponderável da performance ainda exigia um comportamento pré-estabelecido dos alunos, justificado pelas exigências institucionais, preservação do espaço e o que se espera do comportamento de um público acompanhado pelo programa educativo – fruição disciplinada. 

Em passos lentos, entramos no museu em direção aos canteiros, chamando atenção dos outros visitantes. As crianças, pelo medo do desconhecido, se mostravam desconfiadas, e aos poucos se aproximavam da vegetação tentando entender o que se passava. Entre um susto e outro, as descobertas foram acontecendo. Um pé! Uma barriga! Uma cabeça! Ele está morto? Não, ele está respirando. Oh! Uma mão se mexeu! A planta nasceu da pedra?

Crianças curiosas descobrindo o corpo entre arbustos. (Foto: Luiza Palhares)

Os mitos construíam-se no imaginário infantil, histórias naturalmente surgiam na tentativa de justificar os fatos a medida em que se davam no tempo. Todos ali presentes compartilharam uma experiência com o mundo e significaram – de forma pura e inocente – os acontecimentos no tempo e no espaço, num exercício de tomar posse, de apropriar-se, de estar presente e de pertencer. O que era imaginação e criação do grupo misturava-se com a realidade e constituía um corpo mítico performático – o corpo morto plantado no chão, o morto-vivo oferecendo flores, o ser-homem integrado ao ser-planta, o natural e o artificial atravessando-se. O corpo coletivo e partilhado.

Em um segundo momento, instaurou-se no Salão um casulo vivo formado de um papel rijo e branco. O corpo performático, enrolado em uma extensa folha de papel, modelava o casulo. Espanto! Medo! Era um monstro? O casulo se movia, girava, tensionava. Perguntas variadas tentavam aproximar a imagem que se via a um entendimento racional. O tempo expandido exigiu uma atenção especial das crianças, um olhar dedicado a compreender. Olha! Está bravo! Olha! Tem cabelo, é uma mulher! Tem uma mulher lá dentro! Ela está presa! Ai que medo! E eis que, numa brava luta contra o próprio casulo, contorcendo-se e lacerando o papel,  o corpo surge em giros pelo chão seguindo a inércia de seus movimentos. Uma das crianças concluiu suspirando toda tensão do momento, que era melhor que a mulher, pobrezinha, usasse uma tesoura para cortar o papel.

Dobras de Ana Luisa Santos. (Foto: Luiza Palhares)

Ao fim da visita, já nas despedidas, me ausentei por uns segundos do grupo, que ficou no Salão diante do papel amassado e dos canteiros. Quando retornei, metade do grupo estava deitado no chão, contorcendo-se como minhocas, na tentativa de repetir os movimentos da ação que acabara de se passar. O cenário conformou-se com a performance espontânea e criativa das crianças, sem medo e sem espanto, numa manifestação genuína do que foi concebido ao longo da visita.  

Os fenômenos conduziram a visita: juntos encontramos os corpos, observamos seus movimentos, suas similaridades e diferenças, identificamos os elementos deslocados. Naturalmente as crianças observaram os corpos, algumas sentiram medo, outras se espantaram, poucas acharam graça. A maioria investigou com curiosidade, nomeando as imagens da forma como era possível para elas. Quando algum elemento era descoberto a emoção infantil abraçava a obra de uma forma simples e completa, fazendo-me refletir sobre a real importância de tantas racionalizações e conceitos  a que estamos habituados. 

A performance atinge complexidades difíceis de nomear, diz da própria existência, de sentimentos desconhecidos e lugares inabitados, do cotidiano e do mínimo. Ver performance é exercício do sentir, permitir-se no acontecimento, testemunhar e levar adiante. Exige menos de nós do que podemos supor: exige submeter-se, entregar-se.



*Graduada em Artes Plásticas e Comunicação Social, Pompea Tavares é mediadora em Museus e Instituições Culturais desde 2007. Nesta exposição, desenvolveu o Projeto Educativo OUTRA PRESENÇA [investigações e experiências educativas] em diálogo com a proposta Curatorial de Marco Paulo Rolla,  Ana Luísa Santos e Nathália Larsen.

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