Graziela Andrade
Domingo de sol, churrasco com os
amigos, samba, pagode e banho de mangueira. Com algumas variações, essa é uma
cena cotidiana na cultura brasileira e que, ontem, foi deslocada para Museu na Brasa, por Marta Neves. Desacralizando
o espaço do museu, que no Brasil muitas vezes parece reservado a uma parte
privilegiada da população, a artista reproduziu, na entrada do MAP, um
“churrasco na laje”, manifestação típica das comunidades de grandes metrópoles
brasileiras.
![]() |
Churrasco no MAP. (Foto: Luiza Palhares) |
Tão elementar quanto potente, a proposta
de Marta evidencia um problema nacional que é o de, realmente, tornar públicos
os espaços que têm esse estatuto. Esvaziados pelo estigma de pertencerem a uma
cultura elitizada, nossos museus tornam-se espaços misteriosos, seletos e,
assim, afastados de sua função sócio-educativa primordial. O churrasco no MAP,
provavelmente o primeiro na história do prédio de Niemeyer, escancara essas
questões que, como bem sabemos, demandam maior engajamento político, mas também
o entendimento - a princípio lógico, mas pouco efetivo - de que o que é público
nos compete, tanto em termos de ocupação como de cuidados.
![]() |
Banho de mangueira nos jardins do MAP. (Foto: Luiza Palhares) |
Museu na Brasa talvez seja uma dessas ações sobre as quais o espectador se pergunte: mas, isso é arte? Para fomentar a questão, diria que fazer política com aparatos de um churrasco é, no mínimo, extraordinário. Foi desarticulando símbolos culturais, muito facilmente reconhecidos, que a obra desvelou e tornou acessível um debate que é fundamental à nossa sociedade. Marta fez isso de maneira simples, inteligente, ousada, incômoda, para alguns. Nessa adjetivação não estariam alguns dos elementos que caracterizam o que se “pode” chamar de arte?
![]() |
Marta Neves, Fernando Cardoso e a cadela Mônica, no Museu na Brasa. (Foto: Luiza Palhares) |
Ainda carregando cervejas e
molhados pela mangueira, alguns dos participantes do churrasco se posicionaram
ao redor do prédio, por trás das janelas de vidro, para assim assistirem à
segunda performance do dia, A
Verdugada, de Carolina Bottura. O termo que dá título à obra refere-se a
uma espécie de armação, usada no século XVI por mulheres europeias de alta
classe social, a fim de dar forma e volume às suas saias. Com essa referência
em mente, a artista acoplou aos seus quadris um balaio invertido, que fez par
com um modelador em formato de espartilho. Essa forma inicial vai ganhando
volume, sucessivamente, à medida que a artista vai vestindo e sobrepondo peças
de roupa íntima, como camisolas e anáguas.
![]() |
Corpo revestido, Carolina Bottura. (Foto: Luiza Palhares) |
Os gestos são delicados, como também
são as cores das vestes e as caixinhas de música que compõem a cena. Mas o que
se obtém do processo de sobreposição é um corpo sufocado, contido e que se
desnorteia a partir dos giros sequenciais que Carolina realiza em meio aos
tecidos, que lhe cobrem até mesmo o rosto. A extensa parede de espelhos do
salão faz da cena uma enorme caixa de música, na qual todos estão inseridos,
mas aquele corpo que dança arrastando uma coleção de revestimentos parece
prestes a desmoronar.
![]() |
Caixa de música, em A Verdugada. (Foto: Luiza Palhares) |
No auditório, Paola Rettore deu
início à última performance do dia, Correntes e Naufrágios, que faz parte de
uma experimentação maior da autora, iniciada em 2004. Navegando seu próprio
corpo, minimamente, a artista reconstruiu lembranças que compõem seu
"estado corpo" atual: as manchas brancas como resultado de excesso do
sol, as estrias originárias dos movimentos da dança, os pequenos vasos venosos que
se romperam com a grande corrente em fluxo.
Na ação de desenhar sobre a pele
ela remarcou riscos do tempo, fragmentos das errâncias de qualquer corpo, que
enfim é carne, perecível e em viagem provisória, involuntária e inescapável - da
qual só se tem como certo o destino final. O
corpo vai ficando interessante, diz Paola sobre os registros físicos de
suas narrativas que, como cicatrizes, são superfícies da memória.
É vã a tentativa de se estancar nossas
passagens e, então, a artista, literalmente enfrenta o tempo. Nua, sentada em
uma cadeira que não destaca seu lugar em relação ao público ela, que até então
era vista, passa a olhar os outros. Enquanto tudo acontece no ambiente –
questionamentos, tensão, mal-estar, calor, sede, desistência, resistência -,
nenhuma outra ação é ali realizada. A performance
se arrasta lembrando-nos que não há tempo que faça o corpo parar.
![]() |
Paola Rettore em Correntes e Naufrágios. (Foto: Luiza Palhares) |
![]() |
"Jogo" de resistência no MAP. (Foto: Luiza Palhares) |
Já do lado de fora, o som de creu é interrompido na velocidade quatro, pontualmente as 18h, hora de apagar o fogo da popularização do MAP. Que permaneça acessa a brasa de, efetivamente, tornar público o espaço de nossos museus.
![]() |
MAP, ao som de Creu. (Foto: Luiza Palhares) |
Nenhum comentário:
Postar um comentário