11 de nov. de 2013

ACONTECEU NO MUSEU: da brasa, do corpo e da carne



Graziela Andrade

Domingo de sol, churrasco com os amigos, samba, pagode e banho de mangueira. Com algumas variações, essa é uma cena cotidiana na cultura brasileira e que, ontem, foi deslocada para Museu na Brasa, por Marta Neves. Desacralizando o espaço do museu, que no Brasil muitas vezes parece reservado a uma parte privilegiada da população, a artista reproduziu, na entrada do MAP, um “churrasco na laje”, manifestação típica das comunidades de grandes metrópoles brasileiras.

Churrasco no MAP. (Foto: Luiza Palhares)

Tão elementar quanto potente, a proposta de Marta evidencia um problema nacional que é o de, realmente, tornar públicos os espaços que têm esse estatuto. Esvaziados pelo estigma de pertencerem a uma cultura elitizada, nossos museus tornam-se espaços misteriosos, seletos e, assim, afastados de sua função sócio-educativa primordial. O churrasco no MAP, provavelmente o primeiro na história do prédio de Niemeyer, escancara essas questões que, como bem sabemos, demandam maior engajamento político, mas também o entendimento - a princípio lógico, mas pouco efetivo - de que o que é público nos compete, tanto em termos de ocupação como de cuidados. 

Banho de mangueira nos jardins do MAP. (Foto: Luiza Palhares)

Museu na Brasa talvez seja uma dessas ações sobre as quais o espectador se pergunte: mas, isso é arte? Para fomentar a questão, diria que fazer política com aparatos de um churrasco é, no mínimo, extraordinário. Foi desarticulando símbolos culturais, muito facilmente reconhecidos, que a obra desvelou e tornou acessível um debate que é fundamental à nossa sociedade. Marta fez isso de maneira simples, inteligente, ousada, incômoda, para alguns. Nessa adjetivação não estariam alguns dos elementos que caracterizam o que se “pode” chamar de arte?

Marta Neves, Fernando Cardoso e a cadela Mônica, no Museu na Brasa. (Foto: Luiza Palhares)

Ainda carregando cervejas e molhados pela mangueira, alguns dos participantes do churrasco se posicionaram ao redor do prédio, por trás das janelas de vidro, para assim assistirem à segunda performance do dia,  A Verdugada, de Carolina Bottura. O termo que dá título à obra refere-se a uma espécie de armação, usada no século XVI por mulheres europeias de alta classe social, a fim de dar forma e volume às suas saias. Com essa referência em mente, a artista acoplou aos seus quadris um balaio invertido, que fez par com um modelador em formato de espartilho. Essa forma inicial vai ganhando volume, sucessivamente, à medida que a artista vai vestindo e sobrepondo peças de roupa íntima, como camisolas e anáguas.

Corpo revestido, Carolina Bottura. (Foto: Luiza Palhares)

Os gestos são delicados, como também são as cores das vestes e as caixinhas de música que compõem a cena. Mas o que se obtém do processo de sobreposição é um corpo sufocado, contido e que se desnorteia a partir dos giros sequenciais que Carolina realiza em meio aos tecidos, que lhe cobrem até mesmo o rosto. A extensa parede de espelhos do salão faz da cena uma enorme caixa de música, na qual todos estão inseridos, mas aquele corpo que dança arrastando uma coleção de revestimentos parece prestes a desmoronar.

Caixa de música, em A Verdugada. (Foto: Luiza Palhares)

No auditório, Paola Rettore deu início à última performance do dia, Correntes e Naufrágios, que faz parte de uma experimentação maior da autora, iniciada em 2004. Navegando seu próprio corpo, minimamente, a artista reconstruiu lembranças que compõem seu "estado corpo" atual: as manchas brancas como resultado de excesso do sol, as estrias originárias dos movimentos da dança, os pequenos vasos venosos que se romperam com a grande corrente em fluxo. 

Na ação de desenhar sobre a pele ela remarcou riscos do tempo, fragmentos das errâncias de qualquer corpo, que enfim é carne, perecível e em viagem provisória, involuntária e inescapável - da qual só se tem como certo o destino final. O corpo vai ficando interessante, diz Paola sobre os registros físicos de suas narrativas que, como cicatrizes, são superfícies da memória.

Paola Rettore em Correntes e Naufrágios. (Foto: Luiza Palhares)
É vã a tentativa de se estancar nossas passagens e, então, a artista, literalmente enfrenta o tempo. Nua, sentada em uma cadeira que não destaca seu lugar em relação ao público ela, que até então era vista, passa a olhar os outros. Enquanto tudo acontece no ambiente – questionamentos, tensão, mal-estar, calor, sede, desistência, resistência -, nenhuma outra ação é ali realizada. A performance se arrasta lembrando-nos que não há tempo que faça o corpo parar.

"Jogo" de resistência no MAP. (Foto: Luiza Palhares)

Já do lado de fora, o som de creu é interrompido na velocidade quatro, pontualmente as 18h, hora de apagar o fogo da popularização do MAP. Que permaneça acessa a brasa de, efetivamente, tornar público o espaço de nossos museus. 

MAP, ao som de Creu. (Foto: Luiza Palhares)

 

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