4 de nov. de 2013

ACONTECEU NO MUSEU: dos deslocamentos da arte

Graziela Andrade

No mezanino, um barco, tendo a lagoa da Pampulha como cenário natural, deixava ver parte das pernas de uma mulher que tinha o resto do corpo coberto por pneus, sacos de lixo e enormes boias de câmaras de ar. O corpo entulhado e inerte fazia arrastado o tempo de quem para ele olhava.

O barco de pernas, no mezanino do MAP. (Foto: Luiza Palhares)




Do lado de fora do MAP, um carro estaciona ao som de Madona e nele dá-se início ao casamento. Casaram-se os gêneros, os corpos, as identidades, os sexos, as sexualidades, a linguagem. Trans – This is not (2011), de Ana Luisa Santos e Guilherme Morais, provoca o desnudamento e descamação de uma estrutura binária e linear, socialmente construída, a fim de normalizar corpos e identidades. Este ideal normativo dos corpos aponta para a exigência de um modelo comportamental excludente que achata a multiplicidade de combinações pertencentes à sexualidade humana.

As noivas do MAP. Ana Luisa Santos e Guilherme Morais. (Foto: Luiza Palhares)

Gêneros, como quer a filósofa e teórica queer Judith Butler, são performances sociais. Seres homens e seres mulheres são construções carregadas por símbolos, gestos e palavras de determinação que, em Trans, tornam-se matéria para uma criação inteligente, despudorada e que nos faz rir de nossas próprias idiotices. Afinal, quem não as têm? 

Os corpos que surgem em Trans achincalham inúmeras formas de se configurar isso que materialmente somos, alcançando desde o mito grego do Andrógino até a origem de Monga, a mulher gorila. O corpo é matéria em transformação, diante de incontáveis possibilidades, inclusive aquela em que, diante do rompimento das normas do pensamento, não se sabe mais quem é quem ou o quê. Como resume bem a afirmação da garota de cerca de cinco anos que assistia à performance: Pai, ela é homem.

Corpo andrógino. (Foto: Luiza Palhares)

Quem é o quê? (Foto: Luiza Palhares)
Enquanto desmanchavam-se corpos no salão principal, inertes estavam as pernas de Christina Fornaciari, a artista que permaneceu no barco, na mesma posição, por cerca de três horas. A performance Dois Franciscos (2013), trata das paisagens desfiguradas que circundam o rio São Francisco da nascente à foz. Encenada diante do mais poluído cartão postal de Belo Horizonte, a obra ganhou outro referencial simbólico e permitiu associações dirigidas ao seu pano de fundo, a lagoa da Pampulha. 

A pura presença, que caracteriza essa performance, parece transferir o incômodo que poderíamos delegar à artista - em sua desconfortável posição entre entulhos -, para o espectador que aguarda a ação ou resposta dela a essa situação. Mas, não há retorno. Assim, o público domingueiro que chega ao museu a passeio, ao deparar-se com o barco, figura dois tipos ansiosos de movimentos: o de usar os celulares para fotografar e o de buscar um porquê imediato para a cena. Importunada, uma mulher perguntou: É só arte mesmo ou tem algum significado? 

Christina Fornaciari entre curiosos em "Dois Franciscos". (Foto: Luiza Palhares)

Trans e Dois Francisco, obras a princípio tão distantes em suas temáticas, parecem ter alcançado, pelas vozes da menina e da mulher, um ponto comum que é próprio ao universo artístico - o de questionar o que nos é dado como verdade.

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