Graziela Andrade
No mezanino, um barco, tendo a
lagoa da Pampulha como cenário natural, deixava ver parte das pernas de uma
mulher que tinha o resto do corpo coberto por pneus, sacos de lixo e enormes
boias de câmaras de ar. O corpo entulhado e inerte fazia arrastado o tempo de
quem para ele olhava.
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O barco de pernas, no mezanino do MAP. (Foto: Luiza Palhares) |
Do lado de fora do MAP, um carro
estaciona ao som de Madona e nele dá-se início ao casamento. Casaram-se os
gêneros, os corpos, as identidades, os sexos, as sexualidades, a linguagem. Trans – This is not (2011), de Ana Luisa Santos e Guilherme Morais, provoca o
desnudamento e descamação de uma estrutura binária e linear, socialmente
construída, a fim de normalizar corpos e identidades. Este ideal normativo dos
corpos aponta para a exigência de um modelo comportamental excludente que achata
a multiplicidade de combinações pertencentes à sexualidade humana.
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As noivas do MAP. Ana Luisa Santos e Guilherme Morais. (Foto: Luiza Palhares) |
Gêneros, como quer a filósofa e
teórica queer Judith Butler, são
performances sociais. Seres homens e seres mulheres são construções carregadas
por símbolos, gestos e palavras de determinação que, em Trans, tornam-se matéria
para uma criação inteligente, despudorada e que nos faz rir de nossas próprias
idiotices. Afinal, quem não as têm?
Os corpos que surgem em Trans achincalham inúmeras formas de se
configurar isso que materialmente somos, alcançando desde o mito grego do
Andrógino até a origem de Monga, a mulher gorila. O corpo é matéria em
transformação, diante de incontáveis possibilidades, inclusive aquela em que,
diante do rompimento das normas do pensamento, não se sabe mais quem é quem ou
o quê. Como resume bem a afirmação da garota de cerca de cinco anos que
assistia à performance: Pai, ela é
homem.
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Corpo andrógino. (Foto: Luiza Palhares) |
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Quem é o quê? (Foto: Luiza Palhares) |
Enquanto desmanchavam-se corpos
no salão principal, inertes estavam as pernas de Christina Fornaciari, a
artista que permaneceu no barco, na mesma posição, por cerca de três horas. A performance Dois Franciscos (2013), trata das paisagens desfiguradas que
circundam o rio São Francisco da nascente à foz. Encenada diante do mais
poluído cartão postal de Belo Horizonte, a obra ganhou outro referencial
simbólico e permitiu associações dirigidas ao seu pano de fundo, a lagoa da
Pampulha.
A pura presença, que caracteriza
essa performance, parece transferir o
incômodo que poderíamos delegar à artista - em sua desconfortável posição entre
entulhos -, para o espectador que aguarda a ação ou resposta dela a essa
situação. Mas, não há retorno. Assim, o público domingueiro que chega ao museu
a passeio, ao deparar-se com o barco, figura dois tipos ansiosos de movimentos:
o de usar os celulares para fotografar e o de buscar um porquê imediato para a
cena. Importunada, uma mulher perguntou: É só arte mesmo ou tem algum
significado?
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Christina Fornaciari entre curiosos em "Dois Franciscos". (Foto: Luiza Palhares) |
Trans e Dois Francisco,
obras a princípio tão distantes em suas temáticas, parecem ter alcançado, pelas
vozes da menina e da mulher, um ponto comum que é próprio ao universo artístico
- o de questionar o que nos é dado como verdade.
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